UM BEBÊ E UM BAÚ
Maria já cuidava daquele bebê há alguns meses, mas nunca teve coragem de abrir o tal do baú, que vivia trancado e escondidinho em um canto da sala de estar. Sempre que o bebê precisava de chupeta, fralda ou roupinha, deveria interfonar para o dormitório de Dona Helena, sua patroa, que descia com a chave, ia até o baú, tirava alguns objetos antigos de lá, pra só depois pegar o que era necessário para uso do bebê.
Maria achava aquilo muito estranho e misterioso, mas Dona Helena agia com a maior naturalidade. O mais estranho é que mesmo após sete meses de serviço na mansão dos Silva Cardoso, ninguém nunca disse a ela o nome do bebê. Uma vez perguntou à emburrada governanta, Dona Rosa: “ Por que nunca chamam o bebê pelo nome? Por que só o chamam de bebê?” Dona Rosa, que de rosa só tinha os espinhos, foi logo respondendo, ou melhor, perguntando: “ O que está na sua frente o que é, um bebê ou um cacho de bananas?”. Foi a primeira e última vez que Maria teceu qualquer comentário sobre a graça da criança e só a chamava mesmo de bebê, neném, nenê e qualquer outro sinônimo que viesse a sua mente. “Por que todos nesta casa têm nome, menos o bebê? O que tem no baú?”, pensava.
Dona Helena era casada com seu Nestor há menos de 2 anos. Seu Nestor, por sua vez, um senhor de 80 anos, estava em seu 16º casamento. Parecia que seu hobby de milionário era casar-se e ter filhos, mas enjoava rápido da vida conjugal, separando-se em menos de 3 anos. Geralmente deixava as esposas, mas mantinha seus filhos com ele; e mesmo após a maioridade, não aceitava que se mudassem, ainda que formassem suas próprias famílias. No total, Seu Nestor tinha 35 filhos: 20 do sexo masculino e 15 do sexo feminino. Bebê era o vigésimo menino.
Seu Nestor tinha uma rotina muito estranha: saía de casa por volta das 4 da tarde e retornava às 3 da manhã, mesmo nos finais de semana. Dona Helena, 40 anos mais jovem que ele, não saía do seu dormitório, a não ser para abrir o baú e olhe lá. Às vezes era possível ouvi-la chorando. Ninguém jamais comentava sobre qualquer ocupação profissional de Seu Nestor.
Aquela mansão, tendo em vista a quantidade de filhos e netos, poderia ser chamada de hotel: tinha nada menos que 48 dormitórios, todos suítes. Os empregados, a não ser os serventes e encarregados pela limpeza, eram proibidos de sair do andar térreo.
Bebê dormia com Maria em um quarto lindíssimo, com decorações infantis, de frente para o jardim florido da mansão. Ele chorava muito pouco, era doce, delicado, gostava de brincar com seu chocalhinho e dormia quase o dia todo. Dona Helena jamais deu de mamar a ele.
Um belo dia Maria notou que as fraldas do bebê haviam terminado e pediu que Dona Helena descesse para abrir o baú. Sua voz ao interfone era péssima. Parecia realmente muito chateada com alguma coisa. Mas desceu rapidamente, assim que Maria a chamou. Tendo em vista seu estado de estresse, esqueceu a chave no baú. Isso já tinha acontecido outras vezes, mas o medo de Maria foi maior que sua curiosidade e ela jamais teve coragem de virar a chave. Apenas a tocava na intenção de abrir o baú, mas alguma intuição sinistra a impedia.
Só que nesta tarde, em especial, o andar térreo da casa estava vazio e quase todos os 35 filhos de Seu Nestor haviam saído. Seu Nestor estava meditando no terraço da casa junto com Dona Helena, prática esta que acontecia todas as tardes, pontualmente às 15h15, antes das saídas misteriosas de Seu Nestor. Era a chance de Maria.
Olhou rapidamente pela janela para ver se não vinha alguém e virou a chave sem pensar duas vezes. O que viu não a surpreendeu: mantinhas meio amareladas, roupinhas de pagão, algumas fotos antigas das várias esposas de Seu Nestor e filhos. Realmente não era possível entender o porquê de tanto mistério e cuidado com o tal do baú. Depois de muito fuxicar, Maria descobriu que o baú, de madeira maciça, possuía um fundo falso e em seu interior...... ouro, muito ouro, em quantidade que jamais havia visto nem no cinema ou na televisão. Eram barras de ouro muito bem embrulhadas.
Ao ouvir passos na escada – provavelmente Seu Nestor preparando-se para sair – Maria deixou a chave na fechadura do baú e correu para o quarto na intenção de trocar o bebê...... que não estava mais lá. Ela ouvia o seu choro, mas não o via ..... e seu choro parecia bem próximo, como se estivesse a seu lado...... Foi então que percebeu o baú escancarado e Seu Nestor saindo com o bebê em um carrinho enorme, que ela jamais havia visto..... Dona Helena chorava mais alto que nunca: não sabia se interferia, se perguntava......
Uma das serventes, que acabava de descer a escada, parou Maria e disse: “Querida, Dona Helena está muito indisposta, mas pediu que te entregasse este envelope e diz que agradece e pede desculpas, mas não precisa mais de seus serviços. “ Maria ficou sem palavras, algo de muito ruim estava para acontecer àquela criança e passou a acreditar que talvez alguém a tivesse visto abrindo o baú.
Ela juntou suas coisas e saiu sem despedir-se dos demais empregados. Abriu o envelope rapidamente, vendo um volume enorme de notas de cem reais, e saiu pela porta correndo na tentativa de alcançar Seu Nestor e impedir a desgraça que estaria prestes a acontecer.
Saiu correndo pelo portão da mansão e pôde vê-lo dobrando a esquina com o motorista de táxi. “Por que não foi com seu chofer privado?”, pensou. Nenhum meio de transporte passava até que chega Bruninho da van, com sua voz irritante de MC funkeiro dos infernos : “ Olha a van! Olha a van !”
Maria praticamente se jogou dentro da van nervosíssima e gritou: “Te dou 100 reais pra você seguir o táxi, que acabou de dobrar a esquina, até seu destino final. Mas você não pode pegar nenhum passageiro no trajeto, hein?” Bruninho mal acreditava na oferta: “É pra já Maricota! Só se for agora! Mete o pé na tábua, Frederico! Mas é pra correr, hein? Pode ir atropelando todos os cones da avenida, mermão!” E Bruninho, para desespero de Maria, pendurou-se na porta da van, mais pendurado que nunca, e berrou com vontade: “A van lotou! A van lotou! Você dançou! Você dançou! “....... Frederico, com fama de motorista lerdo, correu tanto que, além de atropelar os cones, quase mata uma velhinha e um casal de namorados que se amassava na esquina da rua. Quando o táxi parou, Maria gritou: ” Pára, Frederico!”...... Mas Frederico não escutou, porque a essa altura Bruninho da van já tinha criado o rap dos 100 reais e Frederico, embalado no poema, não conseguiu ouvir a voz abafada de Maria.
A van entrou com tudo na traseira do táxi. Seu Nestor voou com tudo na calçada. Maria morreu de medo, pensando que talvez tivesse ferido gravemente seu ex-patrão. O bebê se encontrava no canto da calçada sob os cuidados de uma mocinha na faixa dos 19 anos, que o chamava de Leonardo: “ Leonardo, meu filho! Que bom vê-lo novamente! Como senti sua falta!” Ela chorava e sorria ao mesmo tempo. Maria reconheceu em sua sacola algumas das roupas que viu no baú. Seu Nestor sangrava. O taxista chamava o SAMU em tal desespero que nem viu a van partindo e consequentemente não anotou a placa. A rua estava deserta. Frederico mais uma vez acelerou, só que desta vez até a comunidade em que viviam, a Mariana Perebenta, no Alto da Conceição, considerada uma das mais perigosas do estado.
Maria nunca soube o que de fato acontecia naquela casa. Mas só de descobrir o que havia no tal baú e de saber o nome do bebê, seus olhos e lábios sorriam na mesma sintonia.
Verônica Tratch