O TELEFONE TOCOU
“Amélia, atende o telefone, porra!”
“Calma, mãe! Tô saindo do banho!”
Ficava extremamente constrangida quando o telefone tocava, eu não atendia, e minha mãe ficava no meio da sala aos palavrões com o jornal na mão. Aff....
“Alô!”
“Alô! Boa tarde! Poderia falar com a Dona Maria Antônia, por favor?”
“Quem gostaria?”
“Seu Felipe da farmácia.”
“Vó é pra você!”
Lá vem minha avó Maria Antônia correndo toda torta, com um pedaço de pão na mão e outro na boca. Eu só queria saber por que eu era a encarregada por atender o telefone, se quase nunca a ligação era pra mim.
A vida na minha casa é muito difícil. Nem vejo a hora de fazer 18 anos e me mandar. “Falta pouco”, penso com força, riscando os dias do calendário: em apenas três meses serei maior de idade e poderei fazer o que quiser.
Um dos motivos de as ligações jamais serem pra mim é o fato de que tenho minha própria linha telefônica: foi meu pai de criação, José, quem me deu, junto com um celular lindíssimo e pequeno, facílimo de esconder e que toca baixo.
Na verdade tenho uma vida paralela, que minha avó e minha mãe simplesmente desconhecem.
Minha mãe e meu pai ficaram casados por seis anos. Antes de eu completar nove meses de nascida os dois se separaram. Ele mudou de país, tem uma nova família, mas sempre me liga no Natal e manda uma certa quantia em dinheiro escondido da minha mãe, dentro de algum clássico da Literatura Brasileira enviado por Sedex como presente de Natal.
Meu sonho é ser professora de inglês, mas não falo uma palavra da língua. Então, meu plano é, aos 18 anos, ir ao encontro de meu pai, que mora em Nova Iorque, e ficar por lá até tornar-me fluente na língua.
Eu namoro há seis meses um rapaz chamado André. Nós temos a mesma idade e estudamos na mesma escola. Minha mãe e minha avó jamais perceberam que não seria normal sermos apenas amigos, tendo em vista o tempo que passamos juntos. E é aí que entra o telefone celular dado por José, mas primeiro preciso contar sua linda história.
Assim que meu pai sanguíneo supostamente nos abandonou – ao menos essa é a versão contada pela minha mãe – ficamos um tempo sem termos onde morar, vivendo de favores na casa de parentes, já que o apartamento onde vivíamos era alugado e sem a presença de meu pai era impossível arcar com essa despesa. Após a morte de meu avô, viemos as duas morar com vovó e até hoje vivemos aqui, neste imenso apartamento em um subúrbio do Rio de Janeiro.
José e minha mãe frequentavam a mesma igreja evangélica. Aos poucos foram aproximando-se e de repente apaixonaram-se. Na época, José morava em um conjugado e por isso não tinha condições de nos levar para viver com ele, vindo morar conosco. Minha avó o adorava: era bom ter um homem na família novamente. Minha mãe ria à toa. Quando eu já estava mais crescida, por volta dos quatro anos de idade, José explicou-me que tinha um problema genético que o impedia de ter filhos e por conta disso seu casamento anterior tinha acabado, pois o sonho de sua ex-mulher era ser mãe e ela não aceitava a ideia de adotar uma criança. Ele disse sorrindo que quando veio viver com minha mãe eu ainda era praticamente um bebê, com menos de três anos de idade, e perguntou se, apesar de saber que tenho um pai, incomodar-me-ia se ele me chamasse de filha.
Eu tinha um carinho gratuito por José e por isso aceitei muito bem a sua sugestão.
Minha mãe ficou com ele por 10 anos, até que José adoeceu. Ele teve uma espécie de câncer no pulmão. Todos achavam que ele ia morrer. Durante dois anos ele sofreu em filas de hospitais públicos esperando horas pela sua vez na quimioterapia e rezando para que o Estado fornecesse a ele remédios que nem se trabalhasse por anos sem parar poderia pagar. Até que não resistiu e um dia,ao acordar, minha mãe notou que estava morto ao seu lado. De uma mulher alegre, trabalhadeira e bem resolvida, passou a ser azeda e mal humorada. Jamais se firmou em um emprego novamente, vivendo até hoje de bicos como lavadeira e babá. Passa os dias lendo jornal, reclamando da política, comentando fofocas de artistas e comendo salgadinho com cerveja enquanto assiste ao futebol: minha mãe e minha avó amam futebol!
José morreu no mês de agosto. No dia 23 de dezembro, um vizinho que tínhamos na época, Seu Odorico, um sujeito simpático e educado, bateu em nossa porta com um embrulho e nele tinha meu nome.
“Boa tarde Dona Augusta. Não queria perturbá-la, mas antes de falecer Seu José deixou-me este embrulho. Talvez pressentisse que não duraria muito e por isso pediu que eu o guardasse comigo. É um presente para sua filha. Ele disse que se falecesse antes do Natal gostaria que eu o entregasse a ela.”
“Pode deixar que eu entrego”, disse minha mãe rabugenta, sem demonstrar um pingo de emoção. A sorte é que eu estava perto da porta naquele momento, ajudando minha avó a enrolar os salgadinhos da ceia do dia seguinte na mesa, e ouvi toda a conversa, antecipando-me e pegando o embrulho antes que minha mãe pudesse sequer tocá-lo, o que a deixou bastante irritada.
“Obrigada Seu Odorico. Feliz Natal para o senhor!”, respondi em lágrimas de alegria, sem acreditar que meu pai postiço, à beira da morte, teve a delicadeza de deixar-me alguma coisa de Natal.
Quando começava a abrir o embrulho, sob os olhares curiosos dos três, vi em letras minúsculas os seguintes dizeres, no papel logo abaixo do primeiro rasgo :”Vá para seu quarto.” Antes que pudessem perceber que havia um recado dele ali, corri para o quarto e tranquei a porta. Em cada pedaço de papel rasgado, uma novidade escrita: “Espero que você goste”. Depois: “Toda pré-adolescente precisa de privacidade”. E por fim: “ Se está recebendo este embrulho minha filha, significa que não pertenço mais a este mundo, mas saiba que onde quer que eu esteja te carrego em meu coração. Boas festas pra você, querida!”.
Por último pude perceber que dentro do pacote havia um minúsculo celular e uma quantia em dinheiro que garantiria ao menos um ano de créditos, se eu soubesse utilizar aquele valor com cautela e comedimento. “Ele notou o quanto minha avó e minha mãe ficavam curiosas cada vez que alguém ligava pra mim.”, pensei. O celular era tão pequeno que quase cabia na palma de minha mão. Facílimo de esconder. E foi o que fiz nos últimos quatro anos: arrumei um esconderijo para ele no fundo do meu armário, dentro de minha caixa de bonecas, e deixava-o em um volume tão baixo que era impossível ouvi-lo da sala.
Assim, podia conversar com André, que comprou um aparelho com linha da mesma operadora para que pudéssemos falar um com o outro de graça, sem a bisbilhotice daquelas duas que adoravam saber tudo o que eu fazia.
Meu pai José deu-me pela primeira vez alguma sensação de privacidade e liberdade, patrocinando de certa forma minha “vida dupla”. Ele sempre falou que confiava em mim e na educação perfeita que eu havia recebido naquela casa hoje fria, mas que um dia já foi cheia de amor e de bons exemplos; e que por isso não entendia a superproteção de minha mãe. O fato de saber que José confiava tanto em mim a ponto de presentear-me com a liberdade, mesmo não estando mais neste mundo para saber de que forma a usaria, fez de mim uma pessoa melhor, responsável, equilibrada, confiante. Minhas notas na escola, que nunca foram grandes coisas, até melhoraram após o toque daquele telefone, o toque mágico de José que mudou minha vida e fez com que eu me transformasse em uma decidida mulher.
Verônica Tratch.